Rafael Rosa Hagemeyer
Depois de tanto tempo sofrendo "fogo amigo" de colegas historiadores, eis que enfim os "outros profissionais atuantes na área" resolveram se manifestar contra a regulamentação da profissão de historiador. Depois de anos atuando na nossa área, resolveram reclamar o "uso capião".
E a iniciativa partiu da única "categoria organizada corporativamente" (como nossos detratores gostam de chamar a iniciativa da ANPUH). São eles os "historiadores da ciência", que enfim, depois da imprensa, levantaram sua voz contra nós. Organizados na Sociedade Brasileira de Historiadores da Ciência, parece que agora finalmente descobriram que a ANPUH existe, e querem estabelecer um diálogo - depois de 30 anos nos ignorando solenemente. Segue o link com a "Carta Aberta" publicada sintomaticamente no "Jornal da Ciência":
Os argumentos são os mesmos de sempre - imprecisão do que seja "História", o fato de que há "vários profissionais competentes de outras áreas" (e incompetentes também, mas o interesse é defender o privilégio de uma minoria). A preocupação é não deixar que historiadores se encarreguem de dar disciplinas de "História da Ciência" nas faculdades. Aliás, reclamam também a solidariedade dos historiadores da Arte, da Filosofia, entre outros, categorias que por sua própria natureza etérea, diante da solidez da "ciência", são menos organizadas.
A obrigatoriedade de um historiador dar disciplinas de História em outras áreas da universidade: História Econômica, História da Arte, História do Direito, História da Administração, História da Comunicação, História da Ciência, etc, é uma prerrogativa fundamental para a qualidade do ensino e da formação profissional voltada para um quadro mais amplo: o exercício da cidadania, contra a razão técnica alienada que promove a destruição sistemática do planeta.
Consideramos fundamental, em qualquer área da História, uma visão geral do processo histórico, que a compreensão do desenvolvimento das diferentes formas de conhecimento estejam relacionadas ao contexto mais amplo da época em que aqueles homens viveram. Lembro-me particularmente de um Encontro Nacional de História da Mídia, em São Luís do Maranhão, onde havia muitos profissionais de comunicação fazendo apresentações de absoluto senso comum - nas "Mesas Redondas"... Isso gerou um mal-estar entre os colegas historiadores e a discussão em um GT onde se discutia o perfil dos pesquisadores e seu "background" na área de História. Pois acaso estudantes de outras áreas não penam com a bibliografia e o aparato conceitual dos historiadores quando vão fazer uma "simples" seleção para o mestrado?
É preciso portanto relativizar o discurso auto-depreciativo de muitos colegas e reconhecer a necessidade de um historiador ministrar essas cadeiras em outros cursos, sob pena dos profissionais de outras áreas verem o desenvolvimento de seu perfil profissional a partir do "desenvolvimento da técnica por ela mesma": desenvolvimento evolutivo das técnicas comunicacionais, artísticas, científicas, administrativas, etc, sem uma relação com o contexto histórico na qual se desenvolveram - diferencial verificável ao se ter aulas com um historiador ou um não-historiador. Ou acaso há historiadores dando "Sociologia da Cultura"? Certamente é uma matéria de natureza teórica que alguns historiadores mais próximos dessa área estariam aptos a ministrar. Mas não seriam todos e nem mesmo a maioria que estariam habilitados para isso. Mas tal possibilidade não estaria aberta, pois disciplinas de sociologia devem ser dadas por sociólogos.
Nas universidades públicas isso funciona, sempre funcionou, e professores que fizeram toda sua carreira na universidade pública muitas vezes se colocam contrários à regulamentação por não verem necessidade dela. É evidente: as universidades públicas são o único lugar da sociedade brasileira em que a profissão de historiador "já está regulamentada" - tem espaço reconhecido, e diríamos cativo, e cidadania plena. Mas fora da universidade pública, o que acontece? Alguém fiscaliza o que ocorre nas universidades particulares? O Ministério da Educação estabelece algum critério que ao menos estimule uma empresa a contratar um profissional com formação na área?
É o tipo de questão que não vale responder com: "é, mas eu tenho um amigo que não é formado, mas trabalha e é supercompetente". Significa, então, que os alunos que você, professor de História em universidade pública, está formando, não são competentes para ocupar essas vagas com responsabilidade? E proporcionalmente, para esse seu "amigo competente", quantos outros incompetentes há no "mercado"? Ou acreditaremos que as universidades privadas são avaliadas melhor pelo "mercado" do que pelo MEC? Quais são as diretrizes que estabelecem a exigência de que haja cadeiras de história em outros cursos, e que sejam ministradas por historiadores? Não é fundamental que, ao invés de disciplinas demagógicas como "Responsabilidade Social", inventadas como estratégia de marketing e muitas vezes bibliografia de auto-ajuda, sejam substituídas pelo ensino de história do desenvolvimento de sua área de atuação profissional? Não seria essa a garantia de maior consciência social e cidadã, contra o trabalho alienado e especializado promovido pela razão instrumental triunfante da sociedade contemporânea?
Um profissional da área de engenharia, por exemplo, estará melhor formado se tiver tido aula de "história da engenharia" com um engenheiro ou com um historiador? Aliás, existe tal disciplina nos curriculuns de engenharia? Se não existe, não seria o caso de começar a existir? Alguém acha que os engenheiros se oporiam? Quem se opõe é o mercado, que quer que os homens acreditem que vivem num presente constante, onde a história da engenharia não passa de um entulho de técnicas ultrapassadas que, por estarem ultrapassadas, não precisariam mesmo ser estudadas. O que interessa é a "última novidade" na área, não a identidade profissional vista como herança de um processo histórico, pensada a partir da inserção social das profissões, o status que gozam, seu papel estratégico no desenvolvimento do país, etc.
Então, quando me perguntam: "Você acha que um historiador seria mais competente para dar aula de qualquer cadeira de história na universidade", minha resposta é: em geral sim. Se ponderarem: "Mas haveria profissionais suficientes para satisfazer a demanda de professores dessas áreas?". Minha resposta é que não só haveria como a própria pesquisa nessas áreas seria alavancada pela demanda, uma vez que historiadores lotados em diversos setores gerariam interesse maior dos alunos em se especializarem em áreas que hoje encontram-se "fechadas" ou, por que não dizê-lo, "abandonadas".
Depois de anos discutindo se a História era uma "ciência" ou uma "arte", cabe aos historiadores fugirem deste engodo epistemológico e assumirem que a História é uma profissão, que as faculdades formam profissionais competentes para atuar nessas áreas, e que elas devem ser ampliadas com base na reflexão das relações entre as diversas técnicas e seu contexto social, político, econômico e cultural. E para isso basta tão somente um diploma, em qualquer nível, que garanta o mínimo de discussão teórico-metodológica necessária. Hoje, qualquer instituição universitária exige, além de graduação, um mestrado e/ou doutorado. Não é pedir muito aos "novos historiadores da ciência" que planejem sua carreira nesse sentido.
sábado, 15 de dezembro de 2012
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
A Delícia de ser, afinal, historiador
Laura de Mello e Souza
Professora Titular da USP e, sim, Historiadora
Pesquisadora do CNPq na área de História desde 1992
Professora Titular da USP e, sim, Historiadora
Pesquisadora do CNPq na área de História desde 1992
Apesar de não ter acompanhado de perto os passos que levaram, nos últimos tempos, à regulamentação da profissão de historiador, só a posso saudar com entusiasmo, pois o debate já se encontrava na pauta das nossas reivindicações quando, nos anos 1970, entrei na universidade. Hoje, após 33 anos de atividade universitária, sou uma professora veterana, que tive a sorte de acompanhar trajetórias brilhantes, contribuindo à formação de quadros no nosso país. Mas antes, quando comecei minha vida profissional, e durante muito tempo, fui unicamente pesquisadora, vivendo de bolsas até conseguir contratação no Departamento de História da USP. Naqueles tempos, e desde estudante, sentia-me historiadora, e por não ser professora acabava me vendo às voltas com uma espécie de crise de identidade. Não concordo com as vozes que levantam dúvidas quanto às vantagens da regulamentação, alegando que restringirá a atuação dos que não são historiadores. Ninguém jamais deixará de reconhecer em pessoas como Alberto da Costa e Silva o notório saber do melhor dos historiadores, o que contudo não impede que haja procedimentos que garantam aos profissionais da história o exercício da sua profissão. Não se nega o estatuto profissional a médicos nem a engenheiros. Por que negá-lo ao historiador? Talvez porque, no fundo, paire a dúvida quanto à especificidade do nosso campo de conhecimento, a história sendo vista como assunto meio indistinto, no qual toda pessoa medianamente instruída pode meter sua colher. Cabe a nós, historiadores, deixarmos claro que nossa formação é complexa, morosa e sofisticada. Motivos estes que, junto a tantos outros, justificam plenamente que hoje possamos nos reconhecer e ser reconhecidos como historiadores. Ufa! Até que enfim!
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
Regulamentação da profissão de historiador
Folha de São Paulo, 30/11/2012
TENDÊNCIAS/DEBATES
A recente aprovação do projeto de regulamentação da profissão de historiador no Senado Federal, no último dia 7, tem gerado algumas controvérsias que, do nosso ponto de vista, derivam de certas incompreensões e até mesmo do desconhecimento do texto do projeto.
Alguns têm alegado que a regulamentação conduzirá ao cerceamento da liberdade de expressão daqueles que, mesmo não sendo historiadores de formação, escrevem sobre o passado.
Neste sentido, citam, inclusive, nomes de grandes intelectuais que produziram e continuam produzindo verdadeiros clássicos da historiografia brasileira.
Outros afirmam que a necessidade de formação específica levará à falta de professores de história no ensino fundamental, já que hoje muitos ministrantes desta disciplina realizaram outros cursos de graduação, como pedagogia, ciências sociais e filosofia.
Sobre o primeiro argumento contra o projeto, ele só é manifestado por quem não conhece o seu teor. Em nenhum momento foi proposto que historiadores profissionais tenham exclusividade na formulação e divulgação de narrativas históricas.
Jornalistas, cientistas sociais, diplomatas, juristas, economistas e todos os cidadãos poderão continuar a produzir conhecimento histórico -e esperamos que isso aconteça, pois só a partir de perspectivas diferentes e multidisciplinares conseguiremos fazer avançar a historiografia brasileira que, por sinal, é bastante consistente e tem grande reconhecimento internacional.
Além disso, advogar esta exclusividade aos historiadores profissionais seria atentar contra as liberdades democráticas, o que não é o caso aqui. Prova disso é que o projeto foi apoiado por todas as lideranças partidárias do Senado, demonstrando que ele não tem um viés político-partidário específico.
Quanto ao segundo argumento, defendemos sim que os professores de história realizem alguma etapa de sua formação em história (na graduação ou na pós-graduação), já que acreditamos que nossos alunos do ensino básico devem ter o direito de aprender com docentes qualificados e possuidores de conhecimentos e habilidades específicas nas áreas que lecionam.
Isso não é desmerecer professores de outras disciplinas, mas reconhecer que cada campo disciplinar implica a aquisição de saberes específicos, mesmo que em diálogo com outros âmbitos de conhecimento. (No caso dos professores de história, por exemplo, a atenção às múltiplas temporalidades, a crítica e a interpretação dos documentos, a atualização historiográfica, a atenção às relações entre história acadêmica e história ensinada etc.)
De qualquer forma, esta especialização do corpo docente não se dará de uma hora para outra. Afinal, a própria Lei das Diretrizes e Bases da Educação prevê que, quando não há professores formados nas disciplinas específicas, devem ser aproveitados professores com outras formações e só, em último caso, professor sem nenhum formação.
Isso não impede, contudo, que, a médio e longo prazo, continuemos lutando pela qualificação e especialização de nossos professores, sem deixar de estimular, é claro, o saudável diálogo interdisciplinar.
Ou seja, o projeto não veda a ninguém o direito de escrever sobre história nem pretende impor de uma hora para outra a especialização a todos os docentes. Apenas quer assegurar a presença de historiadores profissionais em espaços dedicados ao ensino e à pesquisa científica em história, para que esses possam, em colaboração com outros estudiosos, contribuir para o avanço da área.
PAULO PAIM, 62, é senador pelo PT-RS, presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado e autor do projeto de lei citado no artigo
BENITO BISSO SCHMIDT, 42, é professor de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e presidente da Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil)
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
BENITO BISSO SCHMIDT, 42, é professor de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e presidente da Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil)
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
Arquivo abriga evento sobre perfil dos historiadores
Seminário quer discutir a
atuação do profissional em instituições arquivísticas
Nos
dias 6 e 7 de dezembro, o Arquivo Público do Estado de São Paulo
estará sediando o evento “O Perfil Profissional dos Historiadores
Atuantes em Arquivos”, promovido pela ANPUH – Associação
Nacional de Professores Universitários de História. As
inscrições estão abertas, e podem ser feitas no
endereço http://www.anpuh.org/perfisprofissionais/.
O evento faz parte do ciclo denominado “Historiador – Perfis Profissionais”. A ANPUH, fundada em 1961, hoje é uma entidade com seções estaduais em todo país, e cerca de 4 mil associados. Refletindo a mudança do perfil do profissional, há muito tempo a entidade já não congrega apenas professores, universitários ou de ensino fundamental ou médio.
“Queremos
discutir quem é esse historiador que trabalha com acervo documental,
em que áreas está presente, qual é a sua formação, que funções
ele ocupa”, explica Benito Bisso Schimidt, professor do
Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e presidente da ANPUH/ Brasil.
A abertura do seminário acontece no dia 6 de dezembro, às 17h, com o debate “O Perfil Profissional dos Historiadores Atuantes em Arquivos”, do qual participará o próprio Benito; o coordenador do Arquivo Público do Estado de São Paulo, Carlos de Almeida Prado Bacellar; o diretor do Arquivo Nacional Jaime Antunes; a representante da ANPUH/Brasil junto ao CONARQ, Conselho Nacional de Arquivos, Tânia Bessone; e a representante do Grupo de Trabalho de Patrimônio da ANPUH/ Brasil, Janaína Cardoso de Mello. A jornada será encerrada com uma confraternização, às 19h30.
No dia 7, a partir das 9h, serão formados Grupos de Trabalho para encaminhar os seguintes debates: Formação do Historiador para atuar em Arquivos; Os Historiadores e a Difusão Cultural em Arquivos; Os Historiadores e a Gestão Documental; A Pesquisa feita por Historiadores que trabalham em Arquivos; Os Historiadores e Atendimento aos Consulentes. Às 14h, haverá uma plenária para elaborar um documento sobre o tema. O encerramento está programado para as 17h.
Segundo Benito Schimidt, a regulamentação da categoria – assunto sobre o qual já há um projeto de lei, o PLS 368/2009, aprovado pelo Senado – permitirá que os historiadores atuem nas instituições arquivísticas, já com uma carreira definida. Ele ressalta, entretanto, que a instituição é, por sua própria natureza, multidisciplinar. Na opinião pessoal de Schimidt, o profissional também tem um papel importante na Gestão Documental, principalmente na passagem do documento da idade intermediária para a permanente. “Nesses momentos, faz falta o olhar do historiador”, diz ele.
Arquivo
Público do Estado de São Paulo
Rua
Voluntários da Pátria, 596 - Santana - São Paulo/SP
terça-feira, 27 de novembro de 2012
Um historiador vale tanto quanto um médico ou advogado, não é?
Marco Antônio Silva foi o único professor universitário que aceitou a participar do Seminário sobre a Regulamentação da Profissão de Historiador, realizado pela Federação do Movimento Estudantil de História (FEMEH), na PUC-Campinas em 1995. Naquele tempo, em que a ANPUH era contra a regulamentação da nossa profissão, como infelizmente ainda hoje muitos professores universitários de História são, ele teve a coragem de assumir sua posição. Agora ele discute o status social do historiador perante outros, como médicos, advogados, geógrafos e sociólogos...
O Senado brasileiro vem de aprovar lei regulamentando a profissão de Historiador. A partir de agora, algumas tarefas específicas passarão a ser privilégio profissional de quem tiver formação acadêmica na área. Não é a primeira carreira de nível superior que merece essa regulamentação. Mesmo no campo das Ciências Humanas, Sociólogos e Geógrafos já desfrutam há alguns anos de condição similar.
Participo do debate sobre a questão, na área de História, ao menos desde os anos 80 do século XX. Lembro de colegas que sustentavam a falta de necessidade de regulamentação em nosso espaço profissional, considerando que importantes historiadores brasileiros do século XX (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Jr.) não tinham formação em curso superior de História. Esse argumento apresentava duas graves fragilidades: 1) quando os três fizeram cursos superiores, não havia bacharelado em História no Brasil; 2) Freyre, Buarque de Hollanda e Prado Jr. tiveram condições pessoais ou familiares para requintadas formações humanísticas fora do Brasil - respectivamente, Estados Unidos, Alemanha e Grã-Bretanha.
A situação é muito diferente para um jovem brasileiro de classe média ou menos que, nos dias de hoje, estuda História e se lança num mercado de trabalho fortemente regulamentado noutras áreas. Permanecer nesse mercado fora de suas regras dominantes é assistir à consolidação dos direitos alheios sem garantia de direitos próprios.
Regulamentar uma profissão é definir exclusividades de exercício, sim. Isso não se confunde com impedir o direito ao pensamento. A História, como tema, sempre será objeto de livre acesso para jornalistas, ficcionistas, advogados, médicos, cidadãos em geral... O desempenho profissional na área, diferentemente, dependerá de uma comprovada capacidade técnica e teórica, obtida em formação acadêmica - como ocorre em relação a médicos, engenheiros, dentistas...
Há quem legitime a regulamentação de algumas carreiras (Medicina e Direito, particularmente) e reivindique a liberdade de prática profissional para as demais: Medicina lida com vidas humanas, Direito zela pelas garantias individuais e coletivas diante da Lei. Quer dizer que falar sobre o tempo humano (fazer, memória) não possui igual magnitude? Quer dizer que pesquisar e ensinar o Holocausto Nazista ou a Ditadura brasileira de 1964/1984 não é tão minucioso quanto interpretar uma lei ou fazer uma cirurgia? Não vejo hierarquia entre essas práticas. Respeito muito os colegas profissionais de outras áreas regulamentadas. Tenho muito respeito por mim mesmo e pelos demais colegas de minha área profissional.
Enquanto houver regulamentação de algumas profissões, não vejo legitimidade em exigir desregulamentação de outras. Agora, podemos conversar sobre desregulamentação geral das profissões no Brasil. Quem se habilita?
Marcos Silva
(Professor Titular de Metodologia da História, FFLCH/USP)
(Professor Titular de Metodologia da História, FFLCH/USP)
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
O historiador e os outros
Por Rafael Rosa Hagemeyer
Infelizmente o debate
feito entre historiadores a respeito da regulamentação da profissão
tem revelado quanto nossa formação é deficiente, pois algumas
manifestações de colegas contrários à medida tem revelado total
desconhecimento não apenas da história das organizações
profissionais (que dirão alguns, é assunto de especialistas nas
relações de trabalho), mas da própria forma como a História se
afirmou como disciplina acadêmica. Quanto a este último tópico,
acho sugestivo o texto do Valdei Araújo sobre “A voz do dono e a
história profissional”, já publicada neste blog.
Tratemos, portanto, de
um outro argumento sempre levantado pelos contrários à
regulamentação: o fato de terem lido na faculdade obras
inspiradoras de profissionais de outras áreas. Encontramos
contribuições importantes da literatura, linguística, comunicação,
ciências sóciais, filosofia e economia, etc. Essa
interdisciplinariedade nos habilita a trabalhar nessas áreas? Não,
porque apesar de podermos acumular conhecimento específico a
respeito de alguns de seus aspectos, nossa formação é
diferenciada. O mesmo vale para outras áreas em relação à
História. No entanto, poderíamos considerar que o historiador
poderia trabalhar na manutenção e conservação de diversos
acervos. Alguns cursos até incluem esses tópicos na formação
acadêmica. Mas infelizmente as profissões de arquivista, museólogo
e sociólogo já estão regulamentadas, já faz algum tempo. Muitos
historiadores nem sabem disso, pois não viam nessas atividades uma
possibilidade real de emprego. Óbvio: a possibilidade real de
emprego só passa a existir no momento em que a profissão é
regulamentada. A partir de então, os arquivos serão obrigados a
abrir concursos públicos para arquivistas, passará a ser exigida
habilitação específica – ainda que, em tese, alguns de nossos
colegas estariam habilitados para exercer funções nestas áreas.
Há aqueles que
consideram a regulamentação excessiva um erro, que é melhor
flutuar livremente num oceano de possibilidades abertas e
interdisciplinares, como era o mundo dos eruditos do século XIX. Tal
oceano, sinto informar, só existe na cabeça imaginativa desses
acadêmicos, que parecem desconhecer a própria estrutura das
universidades em que trabalham. Seria então melhor que vivêssemos
na desregulamentação total, pois haveria maior oferta de trabalho
para todos? Não acredito. “Desregulamentação” é a palavra de
ordem da grande onda neoliberal iniciada nos anos 1990, cujos efeitos certamente são a recessão e o desemprego. Com a desregulamentação, todos os profissionais das humanidades são colocados no mesmo "saco de gatos", e com isso aumenta-se o "exército de reserva" da mão-de-obra disponível, que se sujeita a qualquer tipo de trabalho e qualquer salário. Talvez muitos historiadores já não estejam mais familiarizados com esse processo porque o autor que o desvendou já
não é mais estudado com frequência nos cursos de História. Os que lembram dele
certamente dirão: “Mas ele não era formado em História, e
desenvolveu reflexões importantes também na área da filosofia, da
economia, etc”. Sim, Marx não era formado em História. E também não tinha emprego,
vivia de bicos como jornalista, contava com a ajuda financeira de Engels e teve uma vida pobre e desgraçada. Não é muito diferente da situação por que passam muitos historiadores no Brasil hoje. Mera coincidência?
O movimento que levou historiadores a dar à
História uma dignidade acadêmica no século XIX, transformando-a em carreira
universitária com sua própria teoria e seus próprios métodos, modificou um pouco esse quadro: começou a formar professores, graças à difusão do princípio de escolaridade universal e da transformação da História em disciplina escolar.
Contudo, ao longo do século XX a História passou a competir com as
novas “Ciências Sociais” que a acusavam de superficialidade,
positivismo, falta de aparato conceitual adequado – ou seja, falta
de “cientificidade”. Esse debate, por vezes desleal,
deixou muitos historiadores com complexo de inferioridade, desesperados
por justificarem sua existência autônoma. Para se justificarem, emprestaram instrumental teórico e categorias de análise de outras
áreas, renunciando até mesmo o olhar diacrônico, que foi
característico e diferenciador de sua análise interpretativa, adotando a visão estática e rígida do estruturalismo. Contra essa atitude depressiva, levantou-se uma reação histérica e imperialista, que assumiu a demagógica premissa de que "Tudo é História", quando na verdade "tudo
pode vir a ser história", se for trabalhado e elaborado como tal por um historiador. Não há razão para que o campo da História seja visto como menor: seus procedimentos vem sendo pensados e
discutidos há mais de dois mil anos, ela está estabelecida no ensino escolar e universitário há mais de 150 anos e tem tido uma capacidade genial de se repensar e ser reiventada. Como lembra Peter Burke em seu livro História e teoria social, alguns conceitos originais, como “economia moral” e “invenção das tradições”, foram cunhados por historiadores e hoje vêm sendo utilizados por profissionais das ciências sociais. Talvez sejamos menos propensos ao culto personalista de determinados autores (nós não temos uma "Santíssima Trindade" ou "Pais fundadores" aos quais sempre nos remetemos), e certamente somos mais comedidos em relação à aplicabilidade universal de nosso aparato conceitual, pois temos consciência de que cada período histórico exige ser analisado em sua singularidade.
O diálogo interdisciplinar é inerente ao trabalho do historiador e pode ser frutífero para todos, portanto. Mas isso não significa abrir mão de nossa
identidade profissional e de nossa responsabilidade específica. Como
em todo o debate, existem aqueles que sofrem da doença de Zelig,
personagem de um filme de Woody Allen que se identificava tanto com o
interlocutor que se descaracterizava completamente. Profissionais que trabalham com temas históricos em áreas correlatas podem dar boas contribuições para os historiadores encaminharem seu trabalho. Mas o simples fato de um sujeito pesquisar um tema histórico não faz dele necessariamente um historiador. Ele pode até acumular conhecimento sobre um assunto específico, num período específico. Mas a maneira como ele define seu objeto, o instrumental teórico a que recorre e o tipo de problemática que estabelece são de outra ordem.
Quais os critérios que
nos definem? Pode parecer um argumento burocrático, mas qualquer universidade desenvolve em seus cursos um perfil, uma proposta de formação profissional e um projeto de inserção social para seus formandos. Além disso, há sistemas de validação
de diplomas por parte de órgãos colegiados. Quando conferimos um
diploma de pós-graduação em História, levamos em consideração
que o aluno teve ao menos disciplinas de teoria e metodologia de
história, além das cadeiras específicas. Um autodidata pode sentar
em casa e ler tudo que houver disponível sobre qualquer assunto, mas
para se assegurar que realmente o domina precisa estabelecer um
debate qualificado com outros profissionais. Para isso ele pode
discutir em um simpósio, ou mesmo em um bar, e ali ser questionado, corrigido, complementado, etc. Mas nada disso é tão sistemático quanto o ensino curricular,
onde há um professor da área avalia as considerações do aluno e
lhe confere um grau certificado por uma instituição autorizada. No
limite, os defensores do autodidatismo e da desregulamentação da
área de História estariam questionando o próprio sistema
universitário, com todo seu sistema curricular de disciplinas, avaliações e
validações.
Tudo pode ser questionado, é verdade. Mas há que se ter um mínimo de coerência, e nesse sentido é ridículo que essa crítica seja feita
por profissionais que atuam dentro da universidade e discutem cotidianamente essas questões. Queremos que essa discussão seja mais aprofundada pelo conjunto dos historiadores
brasileiros. A falta de ação nesse sentido permitiu que o Ministério de Educação impusesse recentemente a separação entre o bacharelado e a licenciatura em nossa área, e apesar do princípio de indissociabilidade entre ensino e pesquisa estar plenamente sedimentado entre nós, não tivemos uma reação à altura para impedir que a separação fosse consumada. Acostumados em refletir sobre o passado, os historiadores devem
agora discutir qual é o futuro que querem para sua profissão no
Brasil. Uma coisa é certa: a situação atual pode interessar à
manutenção de posições estabelecidas de alguns profissionais de
outras áreas. Mas ela não interessa aos estudantes de História, que ao se formarem se deparam com
oportunidades de trabalhos praticamente restritas à docência, e
mesmo nela vêm sendo prejudicados, na medida em que a carga horária
de História vem sendo reduzida para acomodar outras disciplinas, tais como
Filosofia e Sociologia.
Por fim, a regulamentação da
profissão de historiador no Brasil não interessa apenas aos
historiadores. Interessa a todos os cidadãos de boa-fé, realmente
preocupados com a falta de cultura histórica do povo brasileiro, que
não pode ser comparada sequer à média de conhecimento histórico
de nossos vizinhos latino-americanos que tenham o mesmo grau de
escolaridade. No “país sem memória” aqueles que ousam olhar
para o passado com profissionalismo e independência são
ridicularizados como “chatos”, “pedantes” ou “obsessivos”.
Por que relembrar coisas tristes
ou vergonhosas do nosso passado, que preferimos esquecer?
Regulamentar a profissão de historiador é colocar o Brasil
finalmente no divã, para que tome consciência de si mesmo. E talvez
a maioria dos historiadores não se sinta seguro para aceitar esse
desafio, que certamente é amedrontador. Mas certamente muitos jovens
que amam a História, e que se sentem hoje desmotivados à
carreira de professor, se sentirão estimulados a contribuir com esse
processo.
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
Debate sobre o pronunciamento anterior
Rafael
Rosa Hagemeyer
Basta ter um mestrado
na área, ou doutorado, e tudo bem... está qualificado pra dar aula
na Universidade, qual é o problema? O problema, creio, não é
esse. Quando a mídia grita contra monopólio, normalmente é porque
o monopólio DELA está em risco! No caso, o monopólio da mídia em
produzir a memória sem ser contestada ou fiscalizada. O problema é
que a ANPUH, sejamos francos, não amadureceu a discussão na
comunidade historiográfica em todas as suas implicações. Uma
coisa é certa: há o interesse, tanto à mídia quanto à "velha
guarda" da historiografia, mas por diferentes razões (ainda
que por vezes complementares) em manter a pesquisa histórica e seus
resultados confinados dentro dos muros acadêmicos.
Arnaldo
Haas Júnior
Paulo, tua reflexão é
salutar, assim como o consistente complemento do Rafael. Aproveito
para comentar dois pontos. O texto do projeto preza pela
simplicidade e pretensa objetividade (possivelmente para lidar com o
mínimo possível de polêmicas e contra-argumentações no próprio
senado). Ocorre que esta opção deixa muitas arestas (que estão
sendo exploradas). Mas não me alongo aqui. O complemento do Rafael
é importantíssimo porque alertar para a maneira incipiente com que
a discussão sobre o projeto foi feita dentro da academia. Na anpuh
nacional ano passado, ao comentar sobre o tema no simpósio que
participei, fui questionado por um professor titular: "você
considera mesmo essa discussão importante?" Bah... Mas ai me
vem a mente: para quem já está institucionalizado, talvez não. É
uma pena! Acredito mesmo que a profissionalização já teria
ocorrido caso a adesão à proposta - e a devida reflexão sobre o
assunto - tivesse sido abraçada com vontade.
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Reinaldo
L. Lohn
Prezado Paulo, acho difícil
que a ANPUH venha a responder o texto a que você faz referência. O
autor, de um modo muito eficaz, não apenas desqualifica o projeto,
mas seus defensores. É uma forma de argumentação válida, mas
pouco ética. Torcer argumentos (com ajuda de claque amistosa) no
sentido de não apenas discutir idéias, mas de incluir ao longo do
argumento a própria inviabilidade da existência do interlocutor, é
uma forma viável de vencer um debate, mas principalmente de impedir
que o debate ocorra. Afinal, se o interlocutor é, por definição,
um incapaz, então não há debate. É o que o autor parecer deseja,
muito embora tenha que reconher através de uma construção
argumentativa muito adequada para suas finalidades. O argumento
central é de que a História, como construto humano fundamental, é
de todos e de qualquer um e que seu conhecimento é essencialmente
não especializável: "epistemologicamente, a história não
pode ser considerada um condomínio fechado. Deveriam poder
pesquisá-la e lecioná-la todos os pesquisadores de áreas
correlatas". Se tudo é História, então não condições para
uma definição precisa de um campo de atuação, logo, nada pode
ser profissionalizável nesse âmbito. Ao levar às últimas
consequências as premissas fundamentais do raciocínio, teríamos
que não apenas retirar correndo o projeto, mas de fechar a ANPUH
logo em seguida, fechar todos os cursos de bacharelado e de
pós-graduação em História do país e ainda pedir muitas
desculpas (se estas forem suficientes) por usarmos tanto dinheiro
público para manter atuações profissionais tão equivocadas por
tanto tempo. Ainda dou de barato que o autor não queira avançar
sobre o ensino de História na educação básica e que, portanto,
cursos de licenciatura voltados exclusivamente para formar
professores para este nível de ensino possam continuar a existir.
Pretender definir um conhecimento especializado sobre a História
seria uma inviabilidade epistemológica e um absurdo. Não por
acaso, o autor faz questão de demonstrar o quanto somos incapazes e
idiotas. Ou seja, é a própria possibilidade de formar
especialistas na historiografia que está em questão. Quanto mais
de haver profissionalização disso! O texto é construído para
mostrar o quanto somos incapazes e toma, para isso, cruelmente, o
Prof. Benito como o exemplo. O projeto teria nascido "da pena
do senador Paulo Paim". Ou seja, em uma linha, anos de
discussão da ANPUH do Rio Grande do Sul, com o valoroso trabalho de
colegas como o Prof. Flávio Heinz, é deixado de lado. Aí temos um
outro componente dessa discussão que é a desqualificação, no
âmbito da própria comunidade de historiadores daqueles que, vindos
de outra geração, de outras instituições, talvez menos
laureadas, com outras demandas, tragam novidades inconvenientes para
setores acadêmicos já estabelecidos. Vamos falar a verdade: todos
os que defendemos o projeto somos, em geral, outsiders, não somos
do Rio de Janeiro e não temos acesso aos salamaleques reservados
aos que exercem o poder na área. Assim como o presidente da ANPUH,
seríamos incapazes "de ler corretamente um documento
legislativo, embora a redação final do projeto não apresente
muita sutileza", isso posto porque, embora de uma área
evidentemente interpretativa, somos dotados de "frágil
hermenêutica", daí a produção dessa "excrescência
legislativa". Por isso mesmo, o autor sequer se digna a abrir a
possibilidade de que o projeto venha a ser discutido e alterado na
Câmara dos Deputados. Seu desejo é de que o projeto seja
simplesmente rejeitado (e, talvez, se possível, seus defensores
sejam condenados à desmoralização pública).
Por fim, mas não menos
importante, achei graça em dois comentários efetuados pelo autor
ao responder seus apoiadores no blog. Num deles, afirmou: "quanto
a mim, talvez por minha formação ser em direito, também sou a
favor de mais desregulamentação..." Como é? A formação
em Direito torna-o favorável à desregulamentação? Existe área
mais regulamentada, inclusive a assegurar o peso da palavra de
sujeitos sociais como ele próprio, do que o Direito? E um outro
comentário apresenta o indício revelador da estrutura básica de
sua argumentação: somos, os que pretendemos nos chamar de
historiadores, simplesmente uns pobres coitados. Ele desafia a um
historiador que "tente virar Fernando Morais, e veja se
consegue". Isso porque "poucos historiadores poderiam
competir com a prosa dele". Não somos capazes de nada mais do
que dar aula. E isso já é muito para a nossa parca formação e
nossa pobre hermenêutica.
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Rafael
Rosa Hagemeyer
Regulamentar a
profissão é passar a levar a História a sério, premissa que os
detratores da profissionalização se recusam a aceitar (aliás,
muitos colegas infelizmente também, acham que é melhor que ninguém
saiba muito bem o que faz um historiador, assim ninguém presta
atenção em nós e ninguém passa vergonha... uma espécie de
corporativismo às avessas, que preza pela invisibilidade
profissional...). Por outro lado, os defensores da
profissionalização ainda não avaliaram suficientemente os
desdobramentos da questão: com a profissão regulamentada (e os
advogados e médicos sabem disso), há que se definir um controle
sobre a ética profissional, pois determinadas formas de exercício
da profissão poderiam ser punidas de diferentes formas, inclusive
com a cassação do diploma em caso extremo. Por outro lado, com a
profissionalização regulamentada, um historiador que tiver acesso
dificultado ou proibido a documentação pertinente à sua pesquisa
(devidamente cadastrada e tal), pode processar a instituição por
"obstrução à sua liberdade de exercício profissional"
- os advogados, p.ex., tem essa prerrogativa (direto à consulta a
todos os autos do processo...). De qualquer forma, será necessário
formar um Conselho Nacional de História, e discutir critérios
éticos para o exercício profissional de forma muito mais séria e
abrangente do que é feito hoje. Isso vai dar muito trabalho, gerar
muita dor de cabeça, prejudicar posições estabelecidas... natural
que também prefiram deixar as coisas como estão.
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Paulo
Melo
Também
acho pouco provável que a ANPUH responda ao autor do texto,
Reinaldo. Nem espero que o faça. Não se trata de uma resposta
pontual, para o Pádua, mas para a linha de argumentação e
desqualificação que ele, e os adversários do projeto,
construíram desde que o tema veio a público. Os sujeitos, e os
interesses contrários à regulamentação, afinam todos no mesmo
diapasão detrator. O nosso silêncio sobre o assunto, num momento
decisivo como este, pode ser interpretado como uma incapacidade de
respondermos a altura e sustentarmos nossa reivindicação. Afinal,
parece não haver interesse no assunto entre os historiadores
estabelecidos (a “velha guarda” da historiografia lembrada pelo
Rafael). Aliás, a ideia de um “corporativismo às avessas” daria
um tópico e tanto para uma conversa. A história que você contou
Arnaldo, infelizmente, não é um caso isolado. Por outro lado,
sabemos como estes textos circulam - diferentemente dos textos da
ANPUH que não saem do nosso estreito campo de relações - e acabam
chegando inclusive aos “nossos” deputados. Quantas vezes os
deputados do DEM e do PSDB usaram de argumentos extraídos do blog de
Reinaldo Azevedo (teu chara, Reinaldo) para usar nos debates no
Congresso sobre temas como o movimento sem terra e as relações
entre o Brasil e o Irã no governo Lula. Nada contra isso. Só estou
dizendo que este tipo de texto circula nas altas esferas e abastece o
repertório de argumentos de muita gente. Sem fazer ilações
levianas, lembro que Demóstenes Torres usou deste expediente algumas
vezes.
Os “críticos” do projeto, “que saiu da pena do
Paim”, estão batendo, com mais ou menos qualidade argumentativa,
nas mesmas teclas. Estão construindo, texto a texto, uma desmontagem
do projeto utilizando de estratégias de desqualificação do projeto
e dos seus propositores, sublinhando a indigência do Congresso que
esta a beira de aprovar tal “aberração jurídica” e operando
uma desconstrução epistemológica da história – “uma aberração
teórica” - como um saber especializado e disciplinar.
A ideia que
costura os textos é realmente a percepção de que a história é
por definição um saber não especializável. Mais que uma
disciplina ou um campo de conhecimento, a ideia de história que
emerge dos textos dos Páduas da vida sugere um patrimônio
universal, que pertence a todos, e que não deve ser privativo de um
grupo de especialistas. Afirmar a história com o um patrimônio,
interdisciplinar e não especializável, e não como um campo de
conhecimento delimitado por regras e teorias, é a estratégia dos
caras. Claro que não se trata de uma conspiração orquestrada por
devotados inimigos, mas está se configurando uma linhagem discursiva
que está promovendo miudamente uma diluição epistemológica da
área e um esvaziamento da figura e da autoridade científica do
historiador. E cá entre nós, e por mais que os textos tenham lá os
seus charmes, os caras não sabem o que estão dizendo. Os adjetivos
e expressões empregados pelo Pádua não deixam dúvidas sobre suas
intenções: “aberração”, “radical recusa da
interdisciplinaridade”, “política de porteiras fechadas”.
Pelas barbas do velho Heródoto, fomos transformados em desprezíveis
coronéis do saber histórico que estão insidiosamente reservando
mercado para nossos pares e colocando cabresto jurídico num bem que
é de domínio geral. Para o Pádua, em particular, a reivindicação
dos historiadores carece de “consistência teórica”. Ela esconde
ambições maiores e ocultas: o que esta sendo jogado é uma política
de “ocupação de espaços de poder”. Simples assim. E não se
trata de uma política de poder pensada na sua positividade. Ok.
Reconheçamos, como sugeriram Rafael e Arnaldo, que não nos
preparamos para isso. Que nunca debatemos o tema da regulamentação
nem o da pós regulamentação com consistência. Mas daí a detratar
uma antiga e justa reivindicação e apresentá-la como uma perversa
tentativa de sequestrar um patrimônio que é de todos e torná-la
nosso domínio particular.....
O truque da desqualificação do
interlocutor é velho. Você foi feliz no seu comentário, Reinaldo.
Mas num momento em que o que esta em jogo é o futuro de uma
profissão, não basta identificarmos os artifícios retóricos do
“adversário”. É preciso argumentar e demolir as objeções uma
a uma. Por mais que os detratores nos pareçam infames, é preciso
levá-los a sério. E é precisamente sobre os pontos repetidos como
mantras nestes textos que, ao meu ver, deve ser construída uma
resposta geral dos historiadores e, ao mesmo tempo, uma defesa da
regulamentação. A saber:
1. A falsa tese do monopólio e da reserva
de mercado (da “porteira fechada”, na linguagem ferina do Pádua).
2. A ideia de que em história não existe especialização e que,
portanto, qualquer um pode lecionar história.
3. A recusa da
interdisciplinaridade.
Não podemos simplesmente ignorar
estas criticas e descartá-las como manifestações menores. Elas
podem crescer diante do nosso silêncio ou de nossas respostas
cuidadosamente elaboradas para nós mesmos. Precisamos aprender a
escrever para o grande público e transformar nossa linguagem cifrada
em textos agradáveis, atraentes e compreensíveis para quem não tem
diploma de historiador. Não estou me referindo as narrativas
mercadológicas e pretensamente críticas dos Narlochs, dos Dudas
Teixeira, dos Peninhas e dos Laurentinos Gomes. Não desmereço o
valor de alguns deles, sobretudo da prosa solta e livre dos vícios
acadêmicos. Mas também não reconheço neles o historiador de
ofício, o trabalho cuidadoso com as fontes e a consistência e
domínio teórico que a formação específica possibilita.
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