quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Da “voz do dono” à história profissional – dois séculos de disputas



Por Valdei Araujo

A aprovação do projeto que regulamenta a profissão de historiador no Senado tem provocado reações furibundas de certo “jornalismo” contra o projeto. Usando da desinformação e do espaço nobre que ocupam na grande imprensa procuram ridicularizar a iniciativa em um movimento concertado para bloquear o projeto na C

âmara dos Deputados. Mais do que opiniões individuais, essa reação revela um pouco da longa história da formação da historiografia como disciplina científica.

O surgimento da história como uma disciplina autônoma no século XIX em todo o Ocidente, mesmo com ritmo variado em cada contexto, acompanhou a crescente importância do conhecimento e da interpretação histórica na vida política das sociedades. Com a perda de centralidade do discurso religioso, o homem precisava decidir pelo seu destino individual e coletivo sem o recurso a uma fonte externa e oculta de legitimação.

Um primeiro sintoma dessa nova importância da história foi a multiplicação das narrativas e versões sobre o passado, em especial aquele mais recente, produzindo como efeito colateral uma profunda crise de confiança no discurso histórico. Afinal, se cada grupo político, religioso, partidário ou governo pudesse “contar” a sua própria versão da história sem qualquer controle interno sobre a sua validade e qualidade, o conhecimento histórico perderia, assim como o discurso da revelação religiosa, qualquer capacidade de nos orientar sobre os valores e as decisões coletivas.

Um pouco como reação a esses “usos e abusos” a historiografia foi deixando de ser apenas um ramo das “Belas Letras” para lentamente adquirir métodos e procedimentos capazes de regular a qualidade e confiabilidade do que estava sendo escrito como história. O veto a documentos falsos e não-originais, a crítica orientada pela busca de conhecimento correto e não apenas o da confirmação dos valores do presente sobre o passado (anacronismo), o estabelecimento de limites éticos rigorosos para o que um historiador poderia ou não escrever sobre o passado, o controle e a crítica dos pares em periódicos científicos, dentre outros procedimentos. Claro que tudo isso não produziu um conhecimento puro e objetivo do passado, mas foi capaz de impor limites ao seu uso político e ideológico.

O simples uso ideológico do passado o tornaria socialmente irrelevante, deixando ao poder e a força o monopólio sobre a verdade – um pouco o que a grande imprensa hoje quer impor à sociedade brasileira e mesmo ao judiciário. Provas, para quê, basta a opinião, a nossa opinião para julgar e condenar, para dizer como foi o passado e como será o futuro. Contra tudo isso foi construída uma disciplina histórica fundada nas condições de prova e na busca de um conhecimento efetivo, mesmo que limitado. Não é de se estranhar, portanto, que venha exatamente dessa grande imprensa e de suas “penas” os ataques ao projeto de regulamentação da profissão do historiador. É mais um capítulo de uma relação sempre tensa entre a historiografia profissional e os interesses “na história”, interesses comerciais (inclusive editoriais) e políticos.

Na década de 1840 tivemos uma polêmica mais densa do que a que vivemos hoje, talvez uma farsa daquele debate. Movido por uma visão política e manipulado por interesses editoriais/financeiros, o General Abreu e Lima publicava em 1843 um “Compêndio da História do Brasil” que era anunciado pelos editores como a primeira história nacional escrita por um brasileiro. Quando saiu do prelo, um jovem e ambicioso pesquisador, que seria no futuro o autor de nossa primeira história nacional em sentido moderno, Francisco Adolfo de Varnhagen, escreveu uma resenha demolidora demonstrando ser a “história” de Abreu e Lima na maior parte um mero plágio, uma simples tradução da História do Brasil de Alphonse Beauchamp. O próprio livro de Beauchamp havia sido denunciado como um plágio da pesquisa do historiador inglês Robert Southey. Hoje sabemos por pesquisas recentes que todo aquele embate significava a emergência de uma historiografia autoral, fundada em pesquisa original, na organização dos grandes arquivos nacionais e em novos padrões de direitos autorais e de responsabilidade científica.

O projeto aprovado no Senado apenas complementa um processo de disciplinarização do discurso histórico moderno.

Portanto, não é de se estranhar que interesses políticos e comerciais de indivíduos e grupos levantem-se contra o projeto. Como no passado, eles também querem atribuir valor aos seus discursos, ao saque que muitas vezes cometem à pesquisa historiográfica e científica, sem ao menos citar seus autores, confundindo suas escrevinhações com o discurso histórico controlado socialmente por meio de instituições como universidades, arquivos e bibliotecas. O projeto não lhes impõe nenhuma restrição, apenas reconhece a dignidade do trabalho do historiador. O reconhecimento da profissão consagra uma solução que permitiu a este profissional (assim como ao jornalista profissional) não ter de se sujeitar ao constrangimento que no passado grandes talentos como Justiniano José da Rocha tiveram de se sujeitar, o de escrever de acordo com a “voz do dono”. Ao denunciar essa triste realidade na célebre caricatura que ilustra esta postagem, Manuel de Araujo Porto Alegre estava ao lado dos historiadores e de todos aqueles que produzem ciência por vocação.

Saiba mais sobre a polêmica, autoria e plágio no século XIX brasileiro:

MEDEIROS, Bruno Franco. Plagiário, à maneira de todos os historiadores: Alphonse de Beauchamp e a escrita da história na França nas primeiras décadas do século XIX. Dissertação. DH/USP. 2011. Orientadora: Iris Kantor. (No prelo pelo Paco Editorial)

MATTOS, Selma Rinaldi de. Para formar os brasileiros. O Compêndio da História do Brasil de Abreu e Lima e a expansão para dentro do Império do Brasil. Tese. USP-DH. 2007. Orientadora: Maria Ligia Coelho Prado.

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